Maracanã lotado na tarde de domingo. Cada time dava conta de dar pontapés no adversário com vigor desmedido, como que pra ver as queixas pularem o alambrado. Em meio à luta para ter a bola e acionar os atacantes, um meio-campista se enfureceu com uma falta marcada pelo juiz. Não teve dúvidas: foi até o círculo central, onde estava o árbitro, colocou-se à sua frente, levantou o dedo indicador como se fosse um canhão e atirou berros para o homem do apito, berros que fizeram o mais exaltado dos torcedores cobrir a cabeça em desespero.
– O cara está louco?!
O Maracanã acabara de nascer, obra do presidente Getúlio Vargas feita para que o estádio fosse o símbolo maiúsculo da Copa de 1950, a primeira realizada no Brasil. Mas o Maracanã, que em tupi-guarani quer dizer o pássaro que imita o som do chocalho, ficou muito tempo desafinado depois da decisão da Copa, em que o Brasil foi derrotado pelo Uruguai e fez o torcedor se lamentar por um dia ter nascido.
Mas o tempo cuidou de amainar as dores, e o Maracanã abriu suas portas para que a enxurrada de lágrimas corresse para o mar. Foi quando o carioca voltou ao estádio e resolveu soltar seu canto guardado desde que o uruguaio Ghiggia calara os brasileiros com seu gol fantasma e fizera o país viver o pior dos pesadelos.
E as duas equipes responderam com garra, até os 30 minutos do segundo tempo, ao entusiasmo das torcidas no retorno ao estádio.
Foi exatamente aos 30 minutos que o meio-campista perdeu a cabeça e fez tímido o Maracanã, tamanha a fúria do craque ao escutar o apito que invalidara a jogada feita por ele. Tinha sido um lançamento perfeito e que faria estufar a rede adversária, fosse qual fosse o atacante, fosse qual fosse o goleiro.
Mais surpreendente do que a maneira com que se dirigiu ao juiz foi o teor da conversa, mais tarde revelada por alguns atletas.Com o dedo indicador em riste, que insistia em cutucar o nariz do árbitro, ele gritou o seguinte:
– O senhor está certo, certíssimo. O mundo pode ter gente ruim, mas o senhor é gente boa, muito boa. O seu apito é mágico, funciona sempre na hora certa. Nunca vi pessoa tão honesta como o senhor. Sinceramente, só minha mãe era assim tão decente.
E suas últimas palavras, enquanto o dedo tremulava na cara do juiz, foram estas:
– O senhor é um santo, um grandíssimo santo.
Terminado o teatro, o juiz, desconcertado, nem mesmo conseguiu esgotar os 45 minutos do segundo tempo e fez soar o apito. Enquanto o juiz corria para o vestiário, o jogador deixou o campo calmamente, diante da perplexidade da platéia.
Quando os jornalistas perguntaram ao jogador o que tinha acontecido, ele foi rasteiro:
– Nada, nada…Nada muito importante. Ele apenas escutou o que merecia.
Por razões diferentes, torcida e jogadores, que acompanharam a cena, ficaram de boca aberta. O meio-campista foi tão convincente em sua versão aos jornalista que poucos tiveram coragem de dizer o que realmente havia acontecido. Os que contaram a história foram taxados de mentirosos para o resto da vida.
O juiz nunca mais foi visto de apito na boca. E o meio-campista virou herói, tornou-se o sujeito que deu uma bronca homérica no juiz em pleno Maracanã, não foi expulso e pôs o homem pra correr no final do jogo.
* Dedico esta crônica a Herculano Penna Medina, amigo que me contou esta e outras histórias e nos deixou em 13 de maio de 2006, quando tinha 85 anos.
Não consegui recuperar os dados precisos do jogo para dar nome aos bois. Herculano viu o jogo e provavelmente escutou de alguém o relato do episódio. Se esse alguém deu asas à imaginação e fez com que ela crescesse, paciência. Se a história não aconteceu exatamente assim, deveria ter acontecido.
Salve Herculano.
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